domingo, dezembro 04, 2005

DA VIOLÊNCIA


É tão grande e tão profundo
de larga e triste evidência
todo o mal que vem ao mundo
só traz no bojo a violência.

Cada rosto mostra bem
frio riso e feroz punho
pois o ódio que sustem
é tão grande e tão profundo.

As vidas são o que são
na sua própria turbulência
nem a alma já tem mão
de larga e triste evidência.

Há grandes que são pequenos
este é um mistério rotundo
encontrar entre os venenos
todo mal que vem ao mundo.

É verdade consumada
e com muita frequência
andar ao ‘scuro em jornada
só traz no bojo a violência!


Frassino Machado
In ODISSEIA DA ALMA

ALMA MATER - PEQUENO SER


‘Stou sentado na esplanada
folheando meu dossier
vindo ali da passarada
alma mater, pequeno ser.


Em brando voo receoso
lá chegou ao pé de mim
pardal fino temeroso
debicando amendoim.

Dei-lhe antes do meu pão
que migalhas é com ele
matou fome com paixão
e deu vida à sua pele.

Os seus olhos de safira
amendoados e cretinos
de mim nunca retira
graciosos e ladinos.

Comecei a reflectir
os segredos da Natura
que dos seres do porvir
surge sempre uma ventura.

Mas a borrasca chegou
fazendo grande escarcéu
e o pardal lá esvoaçou
à busca de novo céu.

Já agora vai pelo mundo
uma ameaça inclemente
um mal de aves bem fundo
pondo em p’ rigo toda a gente.

Se das aves vem o mal
nem tudo se perderá
ficará sempre um pardal
a alegrar cada manhã !


Frassino Machado
In AS MINHAS ANDANÇAS

O CALVÁRIO DO POETA - À memória de F. Pessoa



O CALVÁRIO DO POETA


Junto à Brasileira do Chiado
Parafraseando F. Pessoa, nos 70 anos da sua morte :
"quem mais que o poeta teve de galgar os rudes meandros do seu
Calvário?"


O poeta tem seu nome
nas sementes geradas
no ventre do destino
e a sua revelação
ocorre no devir do tempo
que lhe compete.

A própria consistência
vem no fluir das horas
que lhe são delimitadas
pela sua poesia.

E esta não é senão
a resistência imanente
da gestação fora de si
pelo alienar constante
da consciência alheia.

É aqui que nasce o drama,
o drama de assumir,
no fundo, o que se é.

O poeta para se revelar
tem de gerir a sua identidade,
tem de vincar o seu eu,
gerir o ser do não-ser
e resistir sendo.

Neste profundo contraditar
está toda a beleza
da arte poética,
pela qual se manifesta
a verdade do seu mundo.

Andar nele e com ele
é carregar a força mítica
que traz no seu bojo
todas as sensações
que conduzem fatalmente
à sua própria morte.

Porque o poeta tem de morrer
para que fique neste acto
toda a sublimidade
da poesia que sonhou !


Frassino Machado
In ODISSEIA DA ALMA

OS LAUREADOS DO OLIMPO - SANTO AGOSTINHO

Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o baptismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mónica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores consequências do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por consequência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.
Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatónica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimónio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o baptismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloquência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.
Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos Vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade.
Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à redacção de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os Académicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem.
Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.


A VONTADE ETERNA E IMUTÁVEL DE DEUS
- Em « A CIDADE DE DEUS »

por
Agostinho

É certo que muitas coisas más são pelos maus praticadas contra a vontade de Deus. Mas tão grande é a Sua sabedoria e tamanha é a Sua virtude que tudo, mesmo o que parece contrário à Sua vontade, tende para os fins e resultados que Ele antecipadamente viu como bons e justos. Por isso, quando se diz que Deus muda de vontade, que, por exemplo, fica irado contra aqueles para quem era brando, - não foi Ele mas foram os homens que mudaram e de certo modo o acham mudado nas mudanças que experimentam: tal qual como o Sol muda para os olhos enfermos - de suave torna-se de certa maneira áspero, de deleitosos torna-se molesto, embora ele próprio continue a ser o mesmo que era. Também se chama de Deus a vontade que Ele suscita nos corações dos que obedecem aos seus mandamentos e da qual diz o Apóstolo:
É Deus que opera em nós o próprio querer ( Deus enim est, qui operatur in nobis et velle - Filipenses 2:13 );
como se chama de Deus não só a justiça pela qual Ele próprio é justo, mas também a que Ele faz no homem que por Ele é justificado. Da mesma forma se chama de Deus a lei que é antes dos homens mas que por Ele foi dada; pois eram realmente homens aqueles a quem Jesus dizia:
Está escrito na vossa lei ( In lege vestra scriptum est -João 8:17 ),
embora noutra passagem leiamos:
A lei do seu Deus está no seu coração ( Lex Dei ejus in corde ejus -Salmo 37:31 ).
Conforme esta vontade que Deus produz nos homens, diz-se que Ele quer o que Ele próprio não quer, mas faz com que os seus isso queiram, como se diz que Ele conheceu o que Ele fez que fosse conhecido por aqueles que isso ignoravam. Pois, nem quando o Apóstolo diz:
Mas conhecendo agora a Deus, ou melhor, conhecidos de Deus ( Nunc autem cognoscentes Deum, immo cogniti a Deo -Gálatas 4:9 ),
é lícito que acreditemos que Deus conheceu então os que conhecia antes da criação do mundo; mas diz-se que conheceu então o que fez com que então fosse conhecido. Destas formas de expressão recordo-me que já se tratou nos livros anteriores. É, pois, conforme essa vontade ( pela qual, como dizemos, Deus quer o que faz querer ao outros, pelos quais são ignoradas as coisas futuras ) que Ele quer muitas coisas mas não é Ele que as faz.
Com efeito, os seus santos, com uma vontade santa por Ele inspirada, querem que se façam muitas coisas que não chegam a ser feitas; como rogam piedosa e santamente por alguns, mas Ele não faz o que lhe pedem, sendo Ele quem, pelo Seu Espírito, causa neles essa vontade de orar. Por isso, quando os santos querem e rogam, em conformidade com Deus, que cada um seja salvo, podemos dizer, segundo esse tipo de expressões: Deus quer mas não faz; dizemos então que Ele quer no sentido de que Ele faz com que os outros queiram. Mas, conforme essa vontade, que é sua e eterna como a sua presciência, claro está que tudo o que quis no Céu e na Terra, tanto passado e presente como futuro, fê-lo já. Mas antes que chegue o tempo em que se cumprirá como Ele quis o que antes de todos os tempos Ele previu e determinou, nós dizemos: Acontecerá quando Deus quiser; mas se ignoramos dum acontecimento, não só o momento ( tempus ) em que virá a acontecer, mas também se chegará a acontecer, então dizemos: Acontecerá se Deus quiser: não porque Deus venha a ter então uma vontade nova que antes não tinha, mas porque só então acontecerá aquilo que desde toda a eternidade está preparado na sua vontade imutável.