quarta-feira, setembro 17, 2014

VÃO AS SERENAS ÁGUAS

 Luís Vaz de Camões, 1524 - 1580

Vão as serenas águas
Do Mondego descendo
Mansamente, que até o mar não param;
Por onde minhas mágoas
Pouco a pouco crescendo,
Para nunca acabar se começaram.
Ali se ajuntaram neste lugar ameno,
Aonde agora mouro, testa de neve e ouro,
Riso brando, suave, olhar sereno,
Um gesto delicado,
Que sempre n'alma m'estará pintado.
Nesta florida terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente para mim vivia,
Em paz com minha guerra,
Contente com a pena
Que de tão belos olhos procedia.
Um dia noutro dia
O esperar m'enganava;
Longo tempo passei,
Co a vida folguei, só
Porque em bem tamanho me empregava.
Mas que me presta já,
Que tão fermosos olhos não os há?
Ó quem me ali dissera
Que de amor tão profundo
O fim pudesse ver ind'algüa hora!
Ó quem cuidar pudera
Que houvesse aí no mundo
Apartar-m'eu de vós, minha Senhora,
Para que desde agora
Perdesse a esperança,
E o vão pensamento,
Desfeito em um momento,
Sem me poder ficar mais que a lembrança,
Que sempre estará firme
Até o derradeiro despedir-me.
Mas a mor alegria
Que daqui levar posso,
Com a qual defender-me triste espero,
É que nunca sentia
No tempo que fui vosso…

Quererdes-me vós quanto vos eu quero;
Porque o tormento fero
De vosso apartamento
Não vos dará tal pena
Como a que me condena:
Que mais sentirei vosso sentimento,
Que o que minh'alma sente.
Moura eu, Senhora, e vós ficai contente!

Tu Canção, estarás
Aqui acompanhando
Estes campos e estas claras águas,
E por mim ficarás chorando
E suspirando,
E ao mundo mostrando tantas mágoas,
Que de tão larga história
Minhas lágrimas fiquem por memória.


Luís Vaz de Camões
In TROVAS & CANÇÕES

***
  
BIOGRAFIA BREVE

LUÍS VAZ DE CAMÕES nasceu por volta do ano de 1524 e não se sabe ao certo onde terá nascido. Acredita-se que tenha sido em Lisboa. Filho de Simão Vaz de Camões e de Ana Sá.
Ao que tudo indica, Luís pertencia a uma família de pequena nobreza. O que pode comprovar este facto é um documento oficial, denominado “A carta do perdão”, de 1553, que o referencia como Cavaleiro Fidalgo da Casa Real.
Luís de Camões estudou em Coimbra, no mosteiro de Santa Cruz, onde teria tido como mestre de Cultura e Línguas Clássicas um tio monge célebre. O poeta sempre refere em sua lírica que passou muito tempo nas margens de Mondego. Não existe nenhuma prova que ele tenha ingressado na recente universidade desta cidade já que, por questão e conveniência familiar, não teria nisso vantagem. Ademais o famoso mosteiro de Santa Cruz, nessa altura, era mais prestigiado que a própria Universidade.
Viveu em Lisboa antes de 1550 e por lá permaneceu lá pelo menos até 1553. Nesse ano, o jovem Luís foi mobilizado para uma expedição militar, diz-se que por motivos disciplinares, a Ceuta, onde foi ferido e perdeu um de seus olhos numa escaramuça contra os Mouros.
Quando voltou para Lisboa retomou integralmente uma vida boémia. Assume-se aí como um homem dedicado à arte de escrever, nomeadamente em Poesia. Desde sempre identifica-se como um ser humano com uma maneira despreocupada, sarcástica e irónica, vivendo apenas desse estilo de vida boémia dominantemente desregrada. A partir de meados dos anos cinquenta, divide-se entre as suas amantes nobres e também plebeias. Envolvendo-se amiudadamente em rixas e brigas, devido quase sempre a esses amores e paixões, teve de se confrontar frequentemente com a justiça lisboeta da época.
Numa dessas brigas, fere gravemente Gonçalves Borges, um dos servos do Paço e é definitivamente preso. Só consegue a liberdade com a promessa de embarcar de imediato para a Índia. Durante mais três anos de sua vida foi soldado de baixa patente e participou em expedições militares.
Luís de Camões também passou algum tempo na cidade de Macau, onde terá desempenhado a função de provedor de bens de ausentes e defuntos.
Na viagem de volta a Goa naufragou e perdeu quase todos os seus pertences conseguindo somente salvar os manuscritos de “Os Lusíadas“, que veio a ser publicado apenas em 1572, depois de ter regressado Lisboa.
Apesar de receber cerca de 40 réis por dia, “em respeito aos serviços prestados na Índia e pela suficiência que mostrou no livro sobre as coisas de tal lugar”, viveu ainda alguns anos em grande pobreza e privações. Morre em Junho de 1580, no dia 10.
Algum tempo mais tarde, Dom Gonçalo Coutinho manda gravar uma lápide em sua homenagem, que diz: “Aqui jaz Luís Vaz de Camões, Príncipe dos Poetas de seu tempo. Viveu miseravelmente, e assim morreu”.
As obras de Camões só foram reconhecidas verdadeiramente depois da sua morte, sendo ele desde sempre até hoje considerado o maior poeta português de todos os tempos, nomeadamente na arte dos Sonetos e na universal Odisseia de OS LUSÍADAS.

DOIS SONETOS DE CAMÕES


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

*

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades, quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!



                                      Pesquisa de Assis Machado